quinta-feira, julho 19, 2007

A CONSTRUÇÃO DA IGREJA....



RESENHA DO PROCESSO QUE
TORNOU POSSÍVEL A CONSTRUÇÃO
DE CERTO VULTO,
A IGREJA DE BUSTOS,
QUANDO À PARTIDA SÓ SE
CONTAVA COM A VONTADE FÉRREA
DO PADRE
ANTÓNIO HENRIQUES VIDAL


1.ANTECEDENTES
OS FACTOS E AS CIRCUNSTÂNCIAS


O Eng. Pato licenciou-se em Engenharia Civil nos meados do mês de Julho de 1952.
Já casado com a D. Celina passaram a residir no «palacete» construído pelo sogro, em Mourisca do Vouga.
Por razões de vária ordem decidiu encetar a sua carreira profissional na área da residência e para tanto foi alugado o 1º andar de um prédio situado na Praça Conselheiro Albano de Melo da então vila de Águeda, onde se instalou um rudimentar Gabinete Técnico destinado à elaboração de projecto de obras de construção civil, particulares e públicas.
A actividade iniciou-se em meados do ano de 1953 com a elaboração de um projecto de um edifício destinado a comércio e habitação, encomendado pelo Sr. Vitorino Reis Pedreiras, e que veio a ser construído em Bustos, de frente da Capela (Igreja) então existente.
Decorridos cerca de quatro anos, a sede do Gabinete Técnico foi mudada para o segundo andar do prédio então existente na Rua António Ferreira Sucena, no qual estava também instalado o Cartório Notarial.
E por essa data foi decidido criar uma Empresa com o objectivo de se realizarem empreitadas de construção de obras públicas e particulares.
Com esse fim se obteve o indispensável capital através de uma conta caucionada numa instituição bancária e equipou-se, minimamente, a Empresa.A primeira obra pública construída foi o edifício para a Administração Florestal de Águeda, iniciada em 1958 e concluída em 1960

E a actividade seguia, continuadamente.
Ora acontece que no dia 27 de Outubro de 1954, o Padre António Henriques Vidal foi nomeado pároco da freguesia de Bustos com a pesada incumbência de reanimar pastoralmente a adormecida paróquia.
Passados uns tempos, eis que surge no Gabinete Técnico a pessoa do Padre Vidal, sorridente, confiante, voluntarioso e destemido, solicitando ao Eng. Pato, natural e morador em Bustos durante muitos anos, preciosas informações acerca da gente daquela freguesia, com vista a estabelecer uma estratégia adequada a um bom entendimento.
O Eng. Pato não recusou os seus bons ofícios e expôs longamente as virtudes e os naturais defeitos dos seus conterrâneos, advertindo, com muita franqueza, que na sua maioria não eram pessoas da Igreja e aconselhando a que sempre tratasse os seus paroquianos com a máxima franqueza, frontalidade e transparência; que nunca o Padre Vidal recorresse à intriga e muito menos à deslealdade, porque nessa circunstâncias, as reacções seriam inevitáveis e instalar-se-ia um clima de desconfiança e animosidade para sempre.
Seguidamente, o Padre Vidal procurou saber, com certo pormenor, quais as famílias com as quais poderia contar sem quaisquer restrições, as que prontamente as estabeleceriam, ainda as que recusariam qualquer colaboração e finalmente, as indiferentes.
Antes de se despedir, levando todo o «ficheiro», o Eng. Pato, paciente e calmamente, insistiu com ênfase, que o Padre Vidal usasse igual tratamento para com todos os paroquianos, sempre com sensatez, simpatia e a máxima cordialidade, evitando a todo o custo a arrogância e a prepotência.
E o que foi certo, foi as visitas continuarem com o mesmo espírito, ora para obter novos conselhos, ora para relembrar tempos passados durante os quais o Gabinete Técnico já tinha prestado valiosa colaboração nas manifestações caritativas realizadas na paróquia de Águeda e também orientadas pelo Padre Vidal, durante os anos de 1951 a 1954, na qualidade de coadjutor desta freguesia.
Vem daqui o natural conhecimento donde nasceu uma sã amizade entre os personagens que mais tarde viriam a prestar uma útil colaboração na magna e quase impossível missão cometida ao destemido Padre Vidal. Gente jovem, simples, bem intencionada, sem grandes ambições, sensível à solidariedade e capaz de a praticar. As idades oscilavam entre os 26 e os 32 anos, sendo eu, o mais novo, e o Arquitecto Carneiro, o mais velho.
De referir que nestas notas biográficas estavam, evidentemente, arquivadas no ficheiro pessoal do Padre Vidal!
Julga-se agora oportuno fazer uma pequena alusão às actividades quotidianas de uma das destacadas personagens desta saga: o Arquitecto Carneiro.
Não tendo concluído a licenciatura por não ter apresentado o trabalho final para defesa de tese, acabou por deixar para lugar secundário a actividade ligada à arquitectura, passando a dedicar-se ao ensino oficial, ao nível do Ciclo Preparatório, e à direcção da Fábrica do Outeiro.
Nos tempos livres empenhava-se, entusiasticamente, na animação prática e direcção da natação bem como do futebol: era um sócio militante do Recreio Desportivo de Águeda.
Quando era solicitado, comparecia no Gabinete Técnico afim de prestar a devida colaboração no estudo de soluções arquitectónicas.
Para além disso, surgia com muita frequência no Gabinete Técnico, depois das 17 horas, para o que lhe bastava atravessar a Rua do Outeiro.
Eis a razão pela qual era estimado e apreciado participante nas conversas e discussões ocorridas na Sala de Desenho, especialmente animadas quando também se encontrava presente o Padre Vidal.
A referida sala era um amplo salão de um velho edifício cujo primeiro andar constituía uma habitação; tinha uma forma rectangular com as dimensões de 8m x 5m e era muito bem iluminada através de três janelas voltadas para Sul.
Junto às janelas dispuseram-se três grandes estiradores mandados construir ma marcenaria do Sr. Chico Balreira, existente na mesma rua onde morou o poeta Manuel Alegre.
O Gabinete ocupava três salas; as restantes, incluindo a cozinha e as instalações sanitárias, foram subalugadas a uma família, encarregada de fazer a limpeza.
Ainda um pequeno compartimento, independente, foi alugado ao advogado amigo, Dr. Fernando de Oliveira que muitas vezes participou também das conversas e discussões atrás referidas.
Ficam deste modo assinalados os factos e descritas as circunstâncias que constituíram o fundo sobre o qual ocorreu esta indescritível aventura.
Embora a despropósito (ou não), dir-se-á que durante os primeiros quatro anos de actividade, o meio de transporte utilizado nas diversas diligências era a moto “JAWA” de 250 c.c. pertencente ao Eng. Pato.
O Gabinete também não possuía nem taqueómetro, nem teodolito! Quando se tornavam necessários, ou se pediam emprestado à Escola Central de Sargentos ou se alugavam na Sede da Ordem dos Engenheiros, em Coimbra.
E então lá partíamos os dois, empoleirados na moto, levando às costas aparelhos e utensílios, viajando para Sever do Vouga, Giesteira, Agadão, Mamarrosa, etc., a fim de se executarem os trabalhos que nos havia sido encomendados.
A partir dos quatro anos de actividade, o Eng. Pato adquiriu para o Gabinete, um WOLKSWAGEN em segunda mão.
As coisas melhoraram sensivelmente.


2. AS CONVERSAS E DISCUSSÕES
HAVIDAS NA SALA DE DESENHO


Mesmo antes do Padre Vidal frequentar o Gabinete com o objectivo de obter do Eng. Pato informações e conselhos úteis, já na Sala de Desenho se vivia um ambiente da máxima liberdade e responsabilidade, animado pela boa disposição e humor de todos os presentes, mas especialmente do Eng. Pato, que com a sua crítica racionalista e a sua inteligência acutilante, iniciava e sustentava as mais extravagantes questões.
De maneira que, quando surgiu o Padre Vidal, os hábitos não se alteraram. Ganharam, porventura, mais vivacidade e interesse quando entravam na agenda do dia assuntos relacionados com as religiões, com a Igreja católica, com o celibato dos padres, com o uso da pílula anticoncepcional, com a infalibilidade do Papa, em matéria de Fé, etc., etc., etc.
Mas, para além destes, eram regularmente tratados assuntos económicos, sociológicos, psicológicos, de política local, regional, nacional e internacional, com elevação e a profundidade que o cavalheirismo e a capacidade dos intervenientes consentiam!
O Padre Vidal fazia-se anunciar pelo ruído do motor do seu “CITROEN” de dois cavalos, subindo a Rua António Ferreira Sucena. Passados uns instantes, ei-lo que surgia na Sala, sorridente, bem disposto, em grande dinamismo, juntando a um cumprimento jocoso, o imediato anúncio de um acontecimento ou de uma novidade que desde logo constituíam o objecto de conversas animadas.
Após a entrada na Sala, o Padre Vidal dirigia-se sempre para o mesmo local: de costas voltadas para as janelas, encostava o peito a um dos estiradores e colocava os braços sobre ele. E desta posição ouvia as opiniões dos presentes, interrompia-os quando entendia não serem correctas as afirmações e respondia-lhes sempre acaloradamente e com grande convicção, a maior parte das vezes na situação de um contra todos. Não obstante, mantinha sempre no diálogo uma postura correcta e digna, apesar da natureza escaldante de alguns assuntos, respondendo com argumentos coerentes e lógicos que os limites dogmáticos permitiam.
Decorridas duas ou mais horas de renhido debate, afogueado e contente, lá partia o Padre Vidal com a finalidade de “ir cuidar das suas ovelhas”.


Não restava a menor dúvida de que neste confronto de amigos, o mais pertinaz e contundente opositor do Padre Vidal era o Eng. Pato. Homem de palavra fácil e elegante, exercitada nas actividades académicas de pendor político, manejava qualquer polémica com notória a vontade e grande coerência sustentada por um discurso radicalmente racionalista. Por isso, o Padre Vidal muitas vezes se viu “encostado à parede”. Mesmo assim, nunca desistia, lutava indefinidamente.
Este aspecto assumia especial melindre quando o assunto da conversa incidia sobre a Religião católica e em particular sobre a Igreja, no qual o Padre Vidal era obviamente um ‘doutor’ e o Eng. Pato, um aprendiz desqualificado.
Todavia não virava a cara e, sempre que podia, procurava encaminhar a conversa para o aspecto social e desde logo para o político. Muitas vezes o ouvíamos afirmar que a Igreja traíra a sua verdadeira missão na Terra, adulterando o essencial do cristianismo primitivo. Este foi autêntico, vivido, personificado e recriado, enquanto foi manifestação sincera e democrática de compromisso e de comunhão. Partilhar tudo entre todos, especialmente o bem mais essencial à vida, o pão, foi a manifestação mais relevante duma verdadeira sociedade comunista em que cada irmão possuía a clara consciência da sua dignidade de homem e da sua honrosa participação na construção de um Mundo melhor, arrostando com todos os sacrifícios e martírios.
Para o final do Império Romano, o decreto político do imperador Constantino, considerando o Cristianismo religião do Estado veio esvaziá-lo do essencial, passando a dar “ênfase ao passado, o que serve de justificação ao Estado e às dominações, providenciais e legítimas para conduzir homens incapazes de liberdade”. Mesmo depois do extraordinário exemplo e da inglória luta do imortal escravo Spartacus, revoltado contra esta humilhante situação, tornada ainda mais dolorosamente insuportável, quando vivera parte da sua vida em liberdade, conhecendo, portanto, não se tratar de uma fatalidade.


Em consequência deste acontecimento histórico a Igreja transformou-se numa instituição poderosa, hierarquizada, dogmática, elitista, à qual se submeteu passiva e conformadamente a imensidade dos fiéis. Por isso mesmo, a Igreja passou a solidarizar-se com todas as dominações de classe: a escravidão, o assalariamento.
Passou a dar-se importância aos mitos e à liturgia faustosa. Estabeleceu-se o exclusivo da acção espiritual, reduzindo-se a religião à prática da oração individual ou colectiva e dos sacramentos.
E assim continuou o procedimento da Igreja através dos tempos, sustentando a sua prepotência em perseguições e anátemas aos hereges, em Cruzadas, em conspirações, em cismas, em lutas fratricidas, no estabelecimento da Inquisição.
E nos tempos correntes vão-se sofrendo as consequências de tal acção que se observam por toda a parte e nomeadamente entre nós.
Na verdade, o estado ditatorial que nos governa conta com o apoio indiscutível e as boas graças da Igreja católica, regulados pela Concordata assumida entre aquele e a Santa Sé.
Com um acordo estabelecido entre poderosos a que foi dado um formalismo burocrático, extremaram-se os campos; de um lado o Estado, agindo sobre os governados laicos, do outro, a Igreja, salvando as almas dos crentes, através da sua acção, exclusivamente espiritual. Os cidadãos, na rua. Os católicos, dentro dos templos.
Mas, apesar desta intencional discriminação, são, felizmente visíveis manifestações relevantes de muitos sacerdotes católicos desempenhando altos cargos e possuindo profundos conhecimentos que por toda a parte procuram estabelecer novas teorias tendentes a agilizarem o estático conservadorismo da Igreja católica, adequando-o às actuais circunstâncias que a ciência, a técnica, a educação e os meios de informação, acabaram por determinar.
Há nomes que passaram a andar na memória de quantos aspiram por uma salutar mudança. Em França, o do padre e cientista Teilhard de Chardin e o do Abbé Pierre; no Brasil, o dos bispos de Olinda e Recife e de Cratéus, respectivamente D. Hélder da Câmara e de D. António Fragoso; ainda no Brasil, o do padre Leonardo Boff.


E por toda a América Latina onde o número de católicos será, em breve, metade do total mundial, vão surgindo rumores e movimentos de padres, nomeadamente na Colômbia e no Peru. Padres católicos franceses par ali enviados em missão, vieram declarar ao fim de algum tempo que eles é que estavam a ser evangelizados.
Mesmo em Portugal têm surgido aqui e além, valorosas e corajosas manifestações de sacerdotes católicos em ruptura com o reaccionarismo da Igreja, com ilustre representação em algumas províncias ultramarinas.
Toda esta gente se encontra vivamente empenhada em encontrar um alternativa progressista que possa corrigir o actual imobilismo da Igreja católica.
É hoje vulgar e reconfortante ouvir reproduções da parte de excertos orais ou escritos da autoria de D. Hélder da Câmara. Um dos que mais me sensibiliza é o que relata a manifestação pública quando toma conhecimento de que na diocese de Olinda e Recife foi construído um novo infantário, um lar para idosos ou um refeitório para indigentes: “o nosso bispo é um Santo”, ouve-se por toda a parte e também se pode ler na imprensa. Todavia, se o mesmo D. Hélder, no púlpito ou nos jornais, apresenta, claramente, a pergunta “Por que motivo existem pobres?” logo se generaliza a condenação: “O Bispo é comunista!!!” Exemplo frisante de quanto os velhos e pressionantes preconceitos entravam a prática de um cristianismo autêntico!
E não só entre a classe sacerdotal se constatam estas alentadoras atitudes. Muitos jovens católicas a nível universitário, entre os trabalhadores agrícolas e os operários procuram, com afã, instruírem-se e organizarem-se por forma a poderem colaborar activa e eficazmente na realização da mesma missão comum.
Importa, por fim, salientar a ingente acção que cristãos ou não cristãos, comunistas, crentes ou agnósticos, na clandestinidade ou na possível legalidade, vêm desenvolvendo no sentido de, derrubando o regime actual, se poder estabelecer uma sociedade livre, onde os direitos humanos entrem na prática quotidiana e daí resultem relações entre os homens, menos conflituosas, mas antes pelo contrário, mais igualitárias e solidárias, criando um ambiente onde seja possível viver em justiça e em paz.


Reiteradas conversas deste tipo ou dele derivadas que durante anos decorreram na Sala de Desenho serviam, além do mais, para darem ao Padre Vidal um retrato fiel da pessoa do Eng. Pato, do seu carácter, do seu pensamento, das suas convicções, da sua intrepidez, da sua firmeza, dos seus ideais.
O Eng. Pato era um oposicionista militante. Cultivara este ideal desde os bancos da Universidade e manteve-o fulgurantemente luminoso por toda a vida.
Aproveitou todas as oportunidades para propagar as suas convicções. Procurou por todos os meios possíveis lutar contra a ditadura do Estado Novo. Participou e destemidamente na organização de conferências, comícios, palestras, congressos e campanhas eleitorais, em colaboração com verdadeiros amigos, solidários e fiéis. O evento mais relevante e de maiores consequências, consistiu na realização do 1º CONGRESSO REPUBLICANO, do qual foi secretário-geral o excelente cidadão, o ilustre escritor e distinto médico, Dr. Mário Sacramento, que teve lugar na cidade de Aveiro, no ano de 1957.
Sempre que as conversas enveredavam para assuntos deste tipo, o Eng. Pato tomava rapidamente a palavra e manifestava as suas convicções através de um discurso empolgado, vibrante, sem hesitações, guiado por uma lógica linear, perfeitamente coerente e racional. Assumia uma postura naturalmente dominadora e o conteúdo discursivo, tornava-se, pelo menos à primeira vista, aparentemente incontroverso.


Perante tal opositor, o Padre Vidal tornava-se num atencioso ouvinte. De vez em quando procurava interromper o discurso para tentar contrariar algumas das afirmações produzidas. Mas fazia-o sempre de uma forma tímida, insegura, usando argumentos já muito estafados. Nos momentos em que se reconhecia numa situação de manifesta inferioridade, o Padre Vidal voltava para mim os olhos suplicantes, exprimindo o desejo de que eu o fosse auxiliar, uma vez que, no grupo dos circunstantes eu era o único católico confesso e praticante. E se por um lado, como irmão na fé, eu devesse tentar aliviar o fardo que pesava sobre o Padre Vidal, por outro lado não poderia trair a minha consciência, inteiramente irmanada, neste, como em outros aspectos com a do meu saudoso Amigo, do meu verdadeiro Irmão.
Em tais circunstâncias, remetia-me ao silêncio.
Alinhadas, muito sinceramente estes perfis psicológicos, políticos e religiosos dos dois mais importantes interventores na obra, à partida julgada impossível, da construção da Igreja de S. Lourenço, em Bustos, é tempo de abordar propriamente tal acontecimento.


2. O CERNE DO PROBLEMA


Desde o momento em que o Padre Vidal começou a frequentar o Gabinete Técnico do Eng. Pato, gerou-se a ideia consensual de que, entre outras, a missão máxima transmitida pelas superiores hierárquicos e a cumprir a todo o custo e a qualquer preço pelo novo pároco da freguesia de Bustos, seria a realização de amplificação da capela (Igreja) de S- Lourenço.
Mas o Padre Vidal, durante anos não revelou o objectivo de tão ambiciosa missão!
Muito prudentemente decidiu pôr em prática uma estratégia defensiva. E assim sendo, demorou anos a colher informações, a averiguar das capacidades, a inventariar os recursos financeiros, a promover um ambiente favorável ao lançamento de tal empreendimento, a mentalizar os mais directos colaboradores e muito especialmente a congeminar onde poderia contratar pessoal técnico necessário para elaborar o projecto e posteriormente para erguer o edifício.
Mas por fim chegaram as boas notícias!
Veio ao conhecimento público que a Comissão Fabriqueira havia comprado aos herdeiros do Visconde, um terreno anexo à capela de S. Lourenço.
Estavam lançados os dados!
Em breve se fez anunciar o Padre Vidal através do ruído do motor do seu “dois cavalos”.
Surge prazenteiro, ufano, mais risonho do que nunca, ocupando de imediato a sua habitual posição e reclamando atenção de todos, pois pretendia expor um assunto da maior importância.
Silenciados os presentes, o Padre Vidal, com ar triunfante, anunciou que estavam reunidas as condições para se iniciarem todas as diligências e estudos indispensáveis para a construção da obra de ampliação da capela de S. Lourenço, transformando-a na Igreja Matriz da Freguesia de Bustos.
Para tanto vinha apresentar duas propostas: a primeira, para que o Sr. Arquitecto Carneiro se encarregasse da elaboração do projecto da obra; a segunda, para que o Eng. Pato tomasse a seu cargo a empreitada da obra em causa.
O Arquitecto Carneiro, em grande alvoroço, aceitou prontamente o encargo que lhe acabava de ser cometido.
E quando se esperava que o Eng. Pato assumisse igual atitude eis que surge a surpresa! Ele coloca-se, prontamente, numa posição antagónica! Naquele momento “rebentou a bomba!” não se tratava, obviamente, de desfeitear um amigo, cara a cara, e muito menos de abalar uma esperança tão acalentada.


Era uma atitude justificada por três ordens de razões. A primeira tinha que ver com a prudência naturalmente requerida por obra de tamanho vulto. Era certo que o Padre Vidal vinha amadurecendo o assunto há já alguns anos, mas do ponto de vista do Eng. Pato, o problema ainda não se encontrava devidamente equacionado. Por outro lado, a proposta apresentada teria de merecer a indispensável ponderação, especialmente porque naquele momento era patente a insuficiência de meios da Empresa, em capital, em equipamento e em mão-de-obra, para se lançar em tal empreendimento.
A segunda razão prendia-se com a dignidade pessoal e profissional.
Para quem, pública e repetidamente defendeu com tanta sinceridade e convicção, os princípios abertamente antagónicos à doutrina, à liturgia e à acção da Igreja católica, não se sentiria bem com a sua consciência, quando, em face de uma oportunidade de negócio, cedesse prontamente a tentação deste, renunciando aos princípios apregoados.
Era óbvio que não pertencendo ao grémio católico, ao Eng. Pato nada mais competiria de que manter-se alheado das decisões tomadas pela respectiva Igreja.
Mas a condição de freguês de Bustos, o facto da grande amizade e admiração que se estabelecera entre os dois maiores protagonistas deste grande empreendimento em apreço, aliados ao natural direito de simples cidadão à liberdade de expressão, justificavam plenamente a posição assumida, pois considerava ser a obra em questão desnecessária naquela data, não corresponder a opção privilegiada e ser inoportuna em relação às correntes religiosas do pensamento que então emergiam e se começavam a difundir e que ele via com bons olhos.
Seria, portanto, uma incompreensível contradição e um descarado oportunismo, não efectuar uma prévia crítica racional da proposta apresentada em contraposição com o idealismo dos princípios a que se manteve fiel.
A terceira razão dizia respeito ao bairrismo salutar.


É por mais evidente que o Eng. Pato foi, desde jovem, e continuou sendo, um empenhado bairrista. Lutou em vários campos de desenvolvimento e engrandecimento da sua Freguesia. Pertencia à Comissão de Melhoramentos. Naturalmente ansiaria um novo e grande edifício que viesse a contribuir para o desejado engrandecimento.
Mas daí a participar num negócio que conduziria à realização de um empreendimento, contra a qual estava íntima e racionalmente contra, existia uma intransponível distância que a coerência e a decência não permitiam encurtar.

É lógico supor-se que o Eng. Pato pretendia ganhar em dois campos. Por um lado, numa época em que andava ocupadíssimo com as suas actividades de projectista e de construtor, para além das relativas à gestão de uma vastíssima propriedade agrícola, duma incipiente indústria de cerâmica, das naturais incumbências familiares, todas sobrecarregadas com a sua intensíssima actividade política, não seria nada conveniente atirar-se para "a cabeça do touro", correndo o risco de levar uma cornada!
Por outro lado, tinha a firme convicção de que a juventude do Padre Vidal aliada a uma vontade férrea e a uma coragem destemida, verdadeiramente possuído por um sentimento de missão, levariam a ultrapassar todos os obstáculos e surgiria, por fim, a obra realizada.
Também não receava o problema económico-financeiro pois que, como muitas vezes lhe ouvíamos dizer, a Igreja católica tem mil e um estratagemas para conseguir auxílios monetários.
Mas o que importa sobretudo salientar é que, perdurando a sã amizade já bem cimentada entre os dois maiores protagonistas da obra em apreço, o Eng. Pato continuaria, intimamente a ansiar para que tudo viesse a correr pelo melhor, prometendo desde logo e para tanto, uma avultada contribuição monetária.
Palavras não eram ditas, eis que se levanta um generalizado clamor de vozes pró proposta apresentada pelo Padre Vidal e contra a decisão do Eng. Pato. Entre os primeiros estava o Arquitecto Carneiro que, juntando os seus valiosos esforços aos do Padre Vidal, com os aplausos dos demais colaboradores, tentaram convencer o Eng. Pato a mudar de atitude.
Em vão. Naquele momento a decisão era inabalável.
Caberão aqui, porventura, duas breves notas.
Uma referente à minha própria pessoa. Sendo católico praticante, estava inteiramente solidário com a atitude assumida pelo Eng. Pato. E mais curioso ainda, é que desde o início da saga e por certo decorrendo das ideias já atrás salientadas, sempre manifestei pessimismo e resistências à sucessivas fases da obra, nunca acreditando que chegasse a bom termo mesmo quando já avançava para a conclusão. Resisti ainda a estar presente no dia festivo da inauguração e mais ainda à natural curiosidade de contemplar a obra concluída.
Conheço-a simplesmente através de fotografias!


A outra nota tem a ver com mais uma das muitas "saídas" do velho desenhador Túlio Canas, homem muito esperto, trabalhador e vivido, capaz de a todo o momento estar a criar situações de um apuradíssimo humor. Na circunstância soturna, quase trágica, em que se terçavam lanças na luta resultante da divisão assumida pelo Eng. Pato, no meio da vozearia, ouviam-se destacados ditos do velho Túlio: " ... colaboram, mas não entram!" Ou então: "a culpa é do bispo!" Só as gargalhadas que se seguiam conseguiam amenizar o ambiente.

3. ULTRAPASSAGEM DOS ÚLTIMOS OBSTÁCULOS


E, apesar de tudo, o tempo decorreu, as amizades mantiveram-se, as visitas à Sala de Desenho continuaram, as diligências e o processo da construção da obra foram evoluindo.
Achei avisado não incluir neste relato os sucessivos reveses que ocorreram com terrenos e estudos prévios, ante-projectos e projectos uma vez que se encontram magistralmente narrados pelo distinto e excelente Amigo Sérgio Ferreira no escrito que produziu com o título "À volta da Igreja de São Lourenço de Bustos", em 24 de Julho de 2004.
Tendo por certo sobrado incidentes e acontecimentos que embora não tão conhecidos, acabaram por determinar a concepção e a construção da Igreja, tentarei deles dar uma imagem elucidativa, muito embora, a já fracassada memória possa atraiçoar a verdade de alguns pormenores.
Antes porém não resisto à tentação de invocar mais uma vez a figura do Abbé Pierre, recentemente falecido com perto de cem anos e adiantar alguns traços da sua biografia, citar alguns dos seus escritos, em muito aspectos confrontando-a com a do saudoso Eng. Pato e assim ir mantendo a memória que a morte não apagou.
São palavras do próprio Abbé Pierre: “durante a Guerra estava a dois passos do paço episcopal, na paróquia de Notre-Dame. O bispo tinha servido como recruta sob as ordens de Pétain. Fui ter com ele uma noite, depois de andar desaparecido algumas semanas e disse-lhe: «Vou ter que desaparecer». “Se eu soubesse que um sacerdote meu cometia semelhantes imprudências, teria usado de todos os meios ao meu alcance para o impedir de os fazer”, respondeu-me ele. Quando voltei, passados dois anos, tinha sido preso, tinha-me evadido, tinha sido mandado para Marrocos, tinha estado na Argélia e regressado a Paris …


«O padre Grouès!» exclamou o criado de quarto do bispo ao ver-me. Foi abrir a porta da sala do Conselho Episcopal. O velho bispo Caillot aparece em lágrimas, aperta-me nos braços: «Meu filho!» Não estaríamos na situação em que estamos se tivessem havido muitos assim!»
E noutro passo: “É necessário que haja vozes que continuem a reclamar, incansavelmente, a prioridade do santuário familiar; não tolerar dois milhões e meio de mal-alojados, não tolerar quatrocentos mil sem-abrigo. Daria também trabalho aos operários e às empresas.”
Agora sob outro aspecto: propunha-se o Estado Francês impor o restauro do refeitório da abadia de Saint-Wandrille cujas obras estavam orçamentadas em um milhão, duzentos e oitenta mil francos e as quais a abadia teria de contribuir com a quarta parte. Discordando de tal decisão, escreveu o arcebispo uma carta na qual, a certo ponto se podia ler … «É verdade que o aquecimento do refeitório, quando o frio era muito, se tornava difícil. Mas seria o momento para o Estado e, quase à força, para o convento, lançar semelhante obra?» … «Por toda a parte, em todo o mundo, repeti às multidões e aos bispos: «São precisos santuários. Mas depois de construídas quatro paredes, um tecto, janelas e portas, paremos com as despesas e digamos que nos comprometemos todos a realizar os embelezamentos desejáveis apenas quando, na cidade, deixar de haver uma família que seja privada do primeiro dos santuários sagrados – uma habitação digna.» … «Lembro-me de um bispo admirável que conheci no Equador. Diante da igreja que estava a ser construída, mandou pôr um painel onde figuravam todos os embelezamentos previstos pelos arquitectos, escreveu: «Realizaremos toda esta beleza quando já não houver uma família sem habitação.»
Perante tal testemunho teremos que reconhecer quão sensatas, avisadas e plenas do mais estrito espírito de justiça social e de doutrina progressista da Igreja católica haviam sido as ideias manifestadas e as atitudes assumidas pelo Eng. Pato!


Mas regressemos às ‘sobras’ do escrito do Dr. Sérgio Ferreira
Definido, finalmente, e de maneira definitiva e irrevogável, o terreno adquirido para a construção da nova Igreja, a sua localização, forma e dimensões, o Arquitecto Carneiro empenhou-se, verdadeiramente, a elaborar possíveis esquemas para o futuro templo, muitas vezes com prejuízo das suas actividades profissionais.
E quando tal acontecia, o Padre Vidal aparece a anunciar uma iniciativa que viria a produzir muito apreciáveis resultados e a possibilitar a ultrapassagem dos obstáculos que ainda subsistiam: - A viagem a Singeverga com o objectivo de sermos bem esclarecidos sobre as correntes de modernidade que enchiam de ar fresco certos centros religiosos onde estudos e reflexões aprofundados por mestres abades, preparavam os fundamentos para a grande viragem por tantos almejada.
Então, uma bela manhã de fim de Primavera, lá partimos no incansável “dois cavalos”, com destino ao convento beneditino de Singeverga, situado a pouca distância de Santo Tirso.
Uma vez chegados e anunciada a nossa presença pelo som de uma campainha de campanário, serviu de cicerone apresentador o Padre Vidal: o senhor Arquitecto António Filomeno da Rocha Carneiro e os senhores engenheiros Manuel Ferreira dos Santos Pato e Neftali da Silva Sucena. Recebe-nos o abade do convento, pessoa de meia-idade e de mediana estatura, envergando o seu hábito acastanhado cingido na cintura por uma corda. De feições simpáticas e de voz maviosa e bem timbrada mostrou-se, desde o início, muito interessado, afável e disponível.
E então as surpresas agradáveis sucederam-se: desde a descrição quer das novas tendências já abordadas nas conversas da Sala de Desenho, quer das alterações nos velhos rituais litúrgicos, iniciaram a criação de um ambiente de franca cordialidade que em breve possibilitou uma conversação animada, interessada, de elevado nível cultural.
Depois a harmonia, a simplicidade e a beleza que se podiam observar por toda a parte, desde os edifícios, especialmente a capela, aos passeios, às alamedas, aos jardins, às hortas e aos pomares, extasiavam os olhares e enchiam os espíritos de tranquilidade, de alegria e de esperança.
Surgiu, em seguida, o momento do auge do entusiasmo senão mesmo de um certo fervor criativo, quando, estando todos dentro da capela, o abade começa a discorrer sobre as perspectivas que os futuros templos católicos deveriam ter em vista: a singeleza, a pureza, a verdade, a luz!
Acentuava a necessidade de se regressar ao espírito inicial do cristianismo. Ao escutar tais palavras o Arquitecto Carneiro transfigurou-se; o discurso passou a ser contínuo e quase alvoroçado; as perguntas e as dúvidas sucediam-se em catadupa; a atenção, mantendo todos os sentidos em alerta máxima era uma constante; a fixação de todos os pormenores que iam sendo indicados, era imediata, dispensando-se de tirar quaisquer apontamentos.


O Eng. Pato tinha mais uma vez razão. Só a partir daquele momento se tomou verdadeiramente consciência de uma grande aspiração, de uma grande ideia, ainda indecisa, ainda indefinida, nascidas da interiorização da necessidade de a objectivar, de a materializar.
E desde então a ideia do projecto a imaginar, não saiu mais da cabeça do Arquitecto Carneiro.
Uma imagem de retórica que o abade utilizou passou a ser a estrela orientadora do seu pensamento, o símbolo que ele estava, daqui para o futuro, empenhadíssimo em materializar! Disse e repetiu o surpreendente abade: a igreja, o edifício … são pedras mortas; os homens é que são as verdadeiras pedras vivas; a sua comunicação, comunhão e acção é que constituem a Igreja. O óptimo seria que as igrejas se reduzissem a tendas. A partir daqui o símbolo que o Arquitecto Carneiro procurou metamorfosear foi – tenda com muita luz natural! E o Eng. Pato, vislumbrando o surgimento de um projecto ao nível de tão grande ambição, tornou-se atraído pelo elan vigente e interiormente determinado a assumir as responsabilidades da construção da obra a criar.
O segundo momento alto surgiu ao princípio da tarde e que acabou por consolidar todas as disposições optimistas; é à mesa que se fazem os grandes negócios!
Na verdade fomos surpreendidos e honrados com um lauto almoço. E mesmo aqui, na prática deste acto material, necessário e ancestral, da ingestão dos alimentos, a cultura, o bom gosto, a inteligência dos homens, podem transformá-lo em momentos de espiritualidade e de prazer!
O arranjo da mesa constituía um regalo para a vista! Tudo era ordem, singeleza e harmonia.
Antes de nos sentarmos, o abade propôs uma breve oração laudatória que nem todos repetiram.
Finalmente acomodados eis que começam a desfilar as variadas iguarias. E, de repente, começa a pairar no ar fragrâncias e odores apetitosos e apetecíveis sempre quando se destapa a terrina e se serve a sopa ou se vão desarrolhando as garrafas. Há muito tempo que nenhum de nós saboreava tão agradáveis sensações! E o abade lá se ia explicando que as hortaliças, as cebolas, as batatas e todos os demais produtos das hortas eram cultivada amorosamente na cerca do convento. Igualmente as aves, galos, galinhas, faisões e por outro lado, coelhos, cabritos, cordeiros, vacas, bezerros eram objectos de criação e manutenção conventuais. Por isso as fragrâncias subsistiram quando foram servidos os assados e os “fricassés” com todos os condimentos e acompanhamentos.
Eu acho que se era tentado a comer mesmo sem apetite; mas este felizmente não faltava.
Surgiram, por fim, as sobremesas: fruta deliciosa e saborosíssima, proveniente dos pomares conventuais e doces variados requintadamente preparados.


Num tal ambiente a conversa tornou-se mais animada e espirituosa e surgiu ao meu pensamento a descrição magistral que Eça de Queiroz na obra “A Cidade e as Serras”, do suculento jantar que é servido ao Jacinto na chegada à sua propriedade rural de Tormes.
Estávamos também no “paraíso”!
Para o fim da refeição ouviam-se, com frequência, intencionais frases humorísticas. De entre muitas, recordo duas proferidas pelo Arquitecto Carneiro: primeiramente começou por afirmar que finalmente pudera compreender o verdadeiro sentido da expressão popular “comer como um abade”! Seguiu-se uma gargalhada geral. E oArq. acrescentou: “não, a diferença de sentido está deveras na qualidade, no engenho, no bom gosto, na inteligência e não como eu, atrevidamente supunha, na quantidade!”
E mais adiante referiu que julgava saber comer-se razoavelmente bem em sua casa. Mas se o abade lhe pudesse garantir que o regime normal das refeições conventuais era idêntico ao da que estava saboreando, então estaria interessado em apresentar a sua candidatura à vaga mais próxima! Nova risada se prolongou por um tempo.
O abade apressou-se a esclarecer que a ordem fundada há cerca de mil anos por S. Bento, adoptou dentro das regras da maior austeridade, o lema que ainda hoje mantém: “ora e labora”; ou seja, “reza e trabalha”. a que o Arq. retorquiu: “nestas condições retiro a candidatura!”
É evidente que os outros convivas participaram também animadamente nas conversas, em especial o Padre Vidal que, para o final da refeição e não perdendo de vista o verdadeiro objectivo da viagem, sugeriu que seria da maior conveniência passar em revisão todos os princípios e pormenores ensinados pelo abade, não fosse ter acontecido o seu total esquecimento em consequência das delícias do almoço. De imediato o Arq. papagueou todos os ensinamentos recebidos, empregando quase os mesmos termos utilizados pelo abade. Mais uma vez rejubilou de contentamento o Padre Vidal ao constatar quão proveitosa estava a ser a viagem em tão boa hora realizada.
Muito a custo íamos reconhecendo estar a aproximar-se o momento doloroso do termo de tão agradável convívio. Para o Arq. tal sentimento só era atenuado pelo ansioso desejo de regressar a Águeda, para “arregaçar as mangas” e entre sonhos e realidades, encontrar a solução para o projecto da Igreja.
Agradecendo penhoradamente tão fidalga recepção, regressámos radiantes, pela tardinha.
Mas o Padre Vidal não desistira de conseguir ainda mais informação adequada. Passados uns dias lá parte de novo, acompanhado do Arq. Carneiro e do Eng. Pato com a finalidade, desta vez, de observarem igrejas de construção recente na região da Estremadura portuguesa, nomeadamente, a da Benedita.


Regressaram completamente desiludidos. Nada do que viram estava sequer próximo daquilo que já vinha sendo imaginado e ambicionado.
Não restava então outra alternativa para o Arq. Carneiro que não fosse trabalhar afincadamente no problema; e assim iniciou uma actividade intensiva de consulta de livros e revistas da especialidade, passar a adormecer e a acordar com o projecto no pensamento. Andava tão absorvido com este assunto que chegou mesmo a prejudicar as actividades profissionais.
Mas depois de muito esforço e de algum tempo, que o Padre Vidal desejava ser o mais curto possível, eis que se começa a divisar uma luz ao fundo do túnel, começa, enfim, a esboçar-se o nascimento da solução satisfatória, após um “parto” demorado e difícil. Foi imediatamente destacado o escrupuloso e excelente desenhador José Maria Dias para, em absoluto regime de exclusividade, se dedicar ao desenho do projecto da Igreja encarado logo na fase definitiva, à escala 1:50, sob a orientação permanente do Arq. Carneiro. Este ansiosíssimo por poder contemplar uma antevisão realista da obra, em toda a sua volumetria e perspectivas de diferentes ângulos, parte apressadamente para a construção da maqueta, em gesso, mobilizando, para o efeito, os bons ofícios do modelador Carménio, artista da Fábrica do Outeiro e que diariamente passou a dar continuidade à tarefa, a partir das dezassete horas.
Ao fim de alguns meses, foi encantador e reconfortante contemplar, na pureza da alvura do gesso, a miniatura da futura Igreja, toda a beleza do conjunto constituído pelas sucessivas “tendas” que lá surgiram e davam prova concludente da transformação do símbolo em arremedo da realidade. Esta maqueta constituiu motivo de um imenso júbilo para o Arq. Carneiro e ainda mais para o Padre Vidal que a partir de então podia exibir para os seus paroquianos, uma visão realista e antecipada da futura Igreja.

Maqueta do projecto inicial da igreja – foto cedida por Manuel Agostinho Pires


O desenho do projecto lá prosseguia, mas nunca chegaram a ser elaborados os indispensáveis pormenores nem medições, nem orçamento, nem caderno de encargos.
Entretanto, a batata quente passara para o Eng. Pato. Começou então um grande quebra-cabeças para ele, aliás como oportunamente previra. Estavam a surgir as anunciadas canseiras e preocupações.
A questão que se punha era como encontrar o método que permitisse calcular a estabilidade e segurança de tais estruturas previstas no projecto por forma a conseguir-se o seu dimensionamento.
E em seguida perguntava-se qual o processo a adoptar para a sua construção.
Perante tal embaraço, eis que surge uma informação inesperada que acabava por confirmar o velho princípio, já em vigor no tempo dos romanos, de que “a sorte beneficia os audazes”. Por virtude de contactos ligados à actividade de empresário de cerâmica, o Eng. Pato tem conhecimento de existir uma grande unidade do ramo no concelho de Torres Novas.
Sem delongas, eis o Padre Vidal e o Eng. Pato, empreendendo mais uma viagem à descoberta de tal empresa. E encontraram-na. Com grande espanto viram construídas enormes abóbadas, de grande vão e de grande altura, com betão simples tendo incorporados elementos cerâmicos por forma a constituírem lajes delgadas e aligeiradas. Os elementos cerâmicos eram construídos pela empresa que as utilizou nas suas abóbadas e agora fabricava para o mercado. Obtiveram o preço do material e o custo aproximado por metro quadrado, em planta, da construção das abóbadas. Foi uma dádiva de “mão beijada”. Mas conseguiram mais uma informação preciosa: a direcção de uma casa comercial de Lisboa que alugava tubos de aço adequados à construção de andaimes e de cimbres.

Os técnicos da grande empresa cerâmica da Torres Novas prestaram a mais útil e essencial das informações: a estabilidade das abóbadas dependia do seu perfil, condição básica para que apenas se observassem esforços de compressão em todas as suas secções, em face de todas as solicitações actuantes.
Concluída a pesquisa informativa e mesmo na ausência da sua apreciação crítica, o Eng. Pato, durante a viagem de regresso, decidiu optar, sem mais hesitações, pela construção de abóbadas semelhantes às que acabara de observar.
Para tanto, impunha-se, previamente, o estudo dos respectivos perfis. Foi o período de maior esforço intelectual desenvolvido pelo Eng. Pato em todo este processo. Agarrou-se ao estirador durante dias consecutivos, relendo sebentas e tratados em busca de uma solução para o problema. Julgo que foi um tempo de ocupação tão absorvente que até pôs à margem a actividade política.
E como “quem porfia sempre alcança”, também chegou para o Eng. Pato aquele feliz momento de dar uma palmada na testa e dizer – “achei”.
Tratou-se de pôr em prática um velho e já esquecido método gráfico do funicular de forças! E lá assistimos à azafama do estudioso, a colocar sobre o estirador uma folha transparente de papel de esquisso, seleccionar uma escala conveniente para representar os comprimentos e para o polígono de forças resultantes da composição das respeitantes à solicitação permanente (peso próprio da estrutura), com as devidas às solicitações acidentais (acção dos ventos e diferenças de temperatura) e as respectivas reacções, e, a partir daqui, desenhar, a lápis o funicular de forças correspondente. Mas como não se tratava de um cálculo, mas antes, de uma verificação por tentativas, foi obrigado a repetir o desenho do funicular para as várias alturas das abóbadas consideradas.
A envolvente desta linha poligonal representava a imagem desenhada do perfil procurado.
Estava assim ultrapassado mais um grande obstáculo. Não obstante e logo a seguir, constata-se um facto bem decepcionante: os perfis estudados não coincidiam com os das abóbadas projectadas, observando-se para iguais aberturas muito maiores alturas.
Quase se gera o pânico. O Arq. Carneiro propõe que se comece, de imediato, a alterar o projecto, praticamente concluído. O Padre Vidal põe as mãos à cabeça e exclama: “estou desgraçado”!
Foi então que o Eng. Pato mais uma vez evidenciou a sua capacidade de líder. Tendo confiança no trabalho que acabara de realizar e estando certo das suas convicções relativas à possibilidade de, a partir de agora, e somente de agora, de se iniciar com segurança, a construção da nova Igreja, deu um murro no estirador e ao mesmo tempo um grande berro, exclamando: “Não vai haver alteração nenhuma! Eu com base no desenho a lápis traçado neste papel, vou construir a Igreja”!



Regressou o ânimo, a esperança e a boa disposição.
E mais uma vez se reconheceu que o Eng. Pato tivera razão quando, oportunamente aconselhara prudência na assunção de compromissos de grande importância e responsabilidade.
Apressou-se a concluir o estudo, marcando graficamente as sucessivas cotas dos perfis em relação aos correspondentes afastamentos. Mandou tirar cópias heliográficas e lá partiu para a obra com o rolo debaixo do braço, com o fim de implantar, com o rigor possível e no meio de uma floresta de tubos metálicos os pontos dos perfis reais correspondentes às cotas indicadas no desenho. Trabalho de grande rigor e responsabilidade em que foi ajudado por dois valiosíssimos colaboradores: o encarregado da obra, Manuel Martins, morador no lugar da Mesa do Vouga, já falecido, e o desenhador José Maria Dias, felizmente ainda vivo.
Concluída a implantação que permitia a construção dos cimbres, a obra lá foi avançando paulatinamente.
Poderei então afirmar que o Eng. Pato, com uma simples partitura, conseguiu executar uma notável sinfonia!
Mas eis que toda a organização vem a sofrer um rude e inesperado golpe na madrugada do dia 1º de Dezembro de 1962 quando a PIDE bate à porta da residência do Eng. Pato e o leva sob a prisão, primeiro para Coimbra e depois para Caxias de onde só foi libertado em 8 de Fevereiro de 1963.
Terão que parar os trabalhos de construção da nova Igreja? Era a pergunta que a todos atormentava.
Realizou-se uma reunião da equipa responsável e em breve foi deliberado dar continuidade aos trabalhos em curso.
Para tanto contribuiu a dedicação, lealdade e espírito de sacrifício prontamente manifestados pelos dois já referidos colaboradores e ainda por um terceiro, o homem da contabilidade, o Manuel do Carmo Santos, pessoa insuperável em organização, previdência, dinamismo e eficiência.
Este triunvirato assegurou com inexcedível zelo, o funcionamento normal da empresa.
Deste modo foi ultrapassado o último grande obstáculo.
Após o festejado regresso do Eng. Pato, os trabalhos prosseguiram sem mais percalços até à conclusão da obra.

4. NOTAS FINAIS


É natural e lógico admitir que, se no lugar do Padre Vidal tivesse sido nomeado um outro pároco para a freguesia de Bustos, hoje pudéssemos verificar a existência de uma Igreja de S. Lourenço. Mas aquela, a que verdadeiramente lá foi construída, só o poderia ter sido, sob o impulso, a tenacidade, a sagacidade, a valentia e a inteligente diplomacia do Padre Vidal. Apenas ele conseguiria mobilizar, entusiasmar e estabelecer uma sã convivência e uma segura amizade entre os dois principais colaboradores, Arq. Carneiro e Eng. Pato, respectivamente autor do projecto e construtor da Igreja de S. Lourenço de Bustos.
E o que é curioso é o facto de nunca ter havido entre o dono da obra e o construtor nenhum contrato escrito! Desde a altura em que o Eng. Pato abandonou a posição racional e se deixou envolver pelas razões do coração, tudo ficou acordado em poucos instantes, tendo por fundamentos a amizade, a confiança e o sentido comprometedor das palavras.
A estes três personagens são justamente devidas as primeiras e honrosas homenagens. E igualmente justas são as que merecerão todos os demais colaboradores, sem esquecer os modestos e esforçados operários pelo trabalho dos quais se concluiu a notável obra, a troco de um salário de subsistência, quando, à partida, era considerada por alguns pessimistas, como tarefa impossível.
Mas como triunfou afinal o optimismo do Padre Vidal, começámos a ouvi-lo pronunciar, com ar radiante e sorriso intencional, um dos temas básicos da fé católica: “sem Deus nada é possível, com Deus tudo é possível. E foi-o, na realidade.


Acabada a obra, fecharam-se as contas. Então, como hoje, nunca chegou ao meu conhecimento, o facto de o Arq. Carneiro ter recebido qualquer importância monetária para pagamento dos honorários que lhe eram justamente devidos. Eu acredito inteiramente que ele acabou por se contentar com a inefável alegria e a grande felicidade de ter conseguido objectivar o belo.
De certeza, sei que o Eng. Pato nada cobrou pelos prolongados aconselhamentos, assessorias e diligências prestadas durante meia dúzia de anos, bem como pelos aturados cálculos por ele elaborados.
Quanto à função negocial de construtor, levada a bom termo pela sua empresa, esta foi remunerada nos precisos termos em que havia sido, oralmente, acordados: 10% do montante das despesas registadas com a mão-de-obra, transporte e materiais, excluídos destes, os correspondentes aos fornecidos directamente pelo Padre Vidal, na condição de oferecimentos gratuitos por parte de paroquianos e de outros.
Concluída a obra, foram encerradas as contas com apuramento de saldo nulo. Tudo acabara em bem!
Apesar de tudo e antes de terminar a narrativa, eu vejo-me forçado por um irreprimível impulso sentimental, a distinguir um entre os vários colaboradores em apreço, sem contudo pretender fixar um qualquer critério de escalonamento entre os mesmos.
Do meu ponto de vista o Eng. Pato foi o herói maior desta aventura, considerada quase inverosímil. E não só nesta, mas em muitas outras que, nestas circunstâncias não importa reportar.
Mas a heroicidade, manifestação sublime da pessoa humana pressupõe, necessariamente, a prévia existência de condições essenciais, tais como: uma sólida estrutura psicológica, moral e intelectual; a vivência de convicções arreigadas e de ideias superiores; a solidariedade, a disponibilidade e a coragem que impele para a acção decidida, com a finalidade de ver realizados anseios incontidos.
E então, por que legítimo direito, podem convergir num simples mortal, tantos dons, tantas benesses, tantas contribuições graciosas? Tratar-se-á de razões naturais, genéticas? Ou de influências ambientais? Ou de ambas, como afirmava nos princípios do século passado o insigne escritor e célebre filósofo espanhol, Miguel Unamuno?
O Eng. Pato a quem não faltavam nenhuma das citadas condições, dava uma explicação simplista, mas convincente, por mim ouvida e registada: “o que eu sou, com as minhas virtudes e defeitos, as noções que cedo adquiri de honra, liberdade, solidariedade, os hábitos de criticar, opinar e raciocinar, enfim a aquisição e manuseamento das ferramentas necessárias para poder enfrentar a vida, não foram provenientes nem da família, nem dos meios sociais onde convivi, nem das diversas escolas que frequentei.


Tudo isso, devo-o aos ensinamentos amistosos e paternais do meu excelente e inesquecível Amigo, Valério. Com ele, desde criança até à idade de jovem universitário, sentado num mocho, na sua oficina de sapataria, e enquanto trabalhava sem cessar, aprendi moral, higiene, ciências, filosofia, política, civismo, artes, comércio e contabilidade. Aprendi, sobretudo, a autodeterminar-me, a tornar-me independente, a indignar-me e a revoltar-me.
Consequentemente e por toda a vida dediquei ao Valério para além da fiel e inquebrantável amizade, uma admiração e uma consideração indescritíveis”.
Este nobre sentimento do Eng. Pato que nesta oportunidade, com muito gosto descrevo, era manifesto e por conseguinte, de conhecimento público.
Satisfeito com prazer e muito agrado este meu íntimo impulso, seja-me lícito exteriorizar mais um desabafo: actividade dignificante e engrandecedora, foi toda a minha longa convivência com tal Gente, em tal Sociedade.
E creio agora ser oportuno referir que nesta Sociedade irregular, mas não Secreta, o lema posto incansavelmente em prática, sem nunca ter sido imposto nem expressamente declarado, era o que há data andava ainda em voga: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades”.
“Pois sabei que sempre as capacidades conseguiram satisfazer todas as necessidades!


E é tempo de terminar esta já longa narrativa.
Fá-lo-ei, optando por adaptar as palavras proferidas pelo velho bispo Caillot, a propósito do comportamento exemplar, quer cívico, quer religioso, do tão enaltecido Abbé Pierre: “Caro Pato! Não estaríamos na situação em que estamos, se tivesse havido muitos como tu”.
Bem-haja V Fórum Bustos’2007 por ter sugerido a homenagem e deste modo ter contribuído para continuarmos a ter o Eng. Pato no meio de nós.


Neftali da Silva Sucena
(Eng. Civil)
Águeda, 10.07.2007