domingo, outubro 30, 2005

REGULAMENTO DO CEMITÉRIO/1922

Em sessão ordinária de 16.04.1922, a Junta de Freguesia de Bustos deliberou regulamentar as normas de utilização do Cemitério. Dos doze artigos do regulamento, o 1º é reservado às obrigações do coveiro.
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1º REGULAMENTO DO CEMITÉRIO

Artigo 1.ºÉ de obrigação do coveiro

1.º Enterrar os cadáveres que lhe forem apresentados com guia por onde se prove que foi pago o respectivo covato;

2.º As covas terão 65 centímetros de largura por 1,70 m de comprimento e 1,22 m de profundidade separadas umas das outras por um espaço de 0,70 centímetros[1] por todos os lados;

3.º As covas para crianças terão a largura de 0,35 m por 0,80 m de comprimento e um metro de profundidade;

4.º Tapar as fendas e abatimentos que se formam nas sepulturas deitando sobre elas a terra precisa para que fiquem abauladas;

5.º Arrancar as silvas e outros arbustos nativos, conservando o cemitério em perfeito estado de limpeza e asseio;

6.º Cumprir as ordens emanadas do Presidente da Junta.

Artigo 2.º Fica proibida a colocação de lápides, mausoléus, grades ou quaisquer outros distintivos em sepulturas particulares sem prévia autorização da Junta, e apresentação da respectiva planta do alçado, ficando um exemplar arquivado na respectiva secretaria, se essa planta for aprovada.

Artigo 3.º Cada lápide, mausoléu ou grade não poderá ocupar mais de 35 centímetros de largura nem mais de 1,80 (m) de comprimento, alinhando umas com as outras, sob a responsabilidade do coveiro que assistirá, a pedido dos interessados, a estes serviços, por cujo trabalho receberá dos mesmos interessados, a retribuição devida em harmonia com o tempo perdido. Os mausoléus de crianças, lápides ou grades não poderão ocupar mais de 60 centímetros de largo, e 1,30 (m) de comprimento.

Artigo 4.º Os que ocuparem maior superfície que a designada no artigo anterior, ficam obrigados apagar à Junta o preço de uma sepultura a mais visto que, pouco ou muito que ocupem em sepultura não adqui(r)ida, esta fica inutilizada por não ficar com as devidas dimensões.

Artigo 5.º A cantaria empregada em lápides, mausoléus, capelas ou outra obra de arte, será aparelhada fora do recinto do cemitério, e não poderá ser encostadas a plantas ou arbustos que orlam as ruas e servem de ornamento no cemitério.

§ único Fica igualmente proibido cortar ou arrancar buxo ou plantas que servem de ornamento ao cemitério, ficando os infractores responsáveis pelos prejuízos e sujeitos a responderem em processo criminal.

Artigo 6.º As escavações para jazigos, capelas e outras obras serão executadas sob a vigilância e responsabilidade do coveiro, serviço este que será retribuído pelos interessados; e a terra saída dessas escavações ou fundações, não sendo necessária, será retirada do cemitério pelos interessados.

Artigo 7.º As autorizações de que se trata no art.º 2.º serão atribuídas conforme a determinação da Junta.

Artigo 8.º Fica expressamente proibida a exumação de qualquer cadáver antes de cinco anos a contar da sua inumação.

Artigo 9.º Se dentro do cemitério aparecer algum cadáver sem formalidades do costume, deverá este facto ser participado à competente autoridade local que deverá ali aparecer dentro de vinte e quatro horas. Não aparecendo (a autoridade) o cadáver será sepultado em cova separada.

Artigo 10.º De três em três anos os donos dos jazigos, mausoléus e outras obras d’arte, mandarão limpá-los, avivar as respectivas letras e pintar as portas e grades de ferro.

Artigo 11.º As ossadas e outros despojos cadavéricos não poderão ficar à superfície da terra.

Artigo 12.º As famílias que adquirirem terrenos para jazigos ou sepulturas perpétuas, pagarão, além de covato, a retribuição que a Junta arbitrar, conforme estabelece o art.º 6.º do decreto de 8 de Outubro de 1835.
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[1] refere-se a 70 centímetros, já que seria (e é) extremamente difícil medir 7 milímetros de terreno.

quinta-feira, outubro 27, 2005

ADRIANO MOREIRA: A IDENTIDADE NACIONAL

Ninguém escolhe a Nação em que lhe acontece nascer, mas é um acto de liberdade decidir ficar. Na experiência ocidental, o facto de essa comunidade corresponder a uma cultura de solidariedade com raros, se alguns, outros modelos equivalentes, determinou uma evolução consistentemente apoiada e dirigida no sentido de haver uma coincidência entre a Nação e o Estado, e por isso fazendo do Estado Nacional soberano o modelo ideológico da área cultural mais vasta dos europeus.

O conceito, que não foi apenas inspirador de projectos pacíficos de governo e de relacionamento internacional, projectou-se no mundo hoje globalizado em termos de os recentíssimos Estados nascidos da descolonização proclamarem um nacionalismo de projecto, deste modo assumindo que pretendem orientar o seu povo para um modelo final de nação, que solidarize os pluralismos internos acomodados dentro das fronteiras que as hegemonias exteriores definiram.

Acontece que ao mesmo tempo em que este valor se mundializou, a rede de interdependências que a ciência, a técnica, e a teologia de mercado, teceram ao redor da terra, globalizando as exigências de gestão e de reinvenção da governança internacional, produziu uma evidente crise do Estado soberano, a qual se traduz numa nova hierarquia efectiva das potências, em soberanias cooperativas agrupadas em grandes espaços, e também em perdas de capacidade para realizar os objectivos que historicamente foram incumbidos às soberanias, fazendo multiplicar os Estados exíguos, isto é, em declínio de exercício no mundo contemporâneo.

Tudo isto são evoluções dolorosas em que também participamos, mas seria um erro de graves consequências não reconhecer que a crise do Estado soberano não significa crise do Estado nacional, que em mais de uma circunstância histórica desafiante foi uma realidade que despertou, cresceu, e tornou vigorosa a energia capaz de reformular o seu conceito estratégico, tendo como primeira tarefa desembaraçar o ambiente de pessimismos, de autoavaliações depreciativas e deprimentes, de estados de espírito demissionários, de contaminações da decisão de ficar. A atitude que se traduz em regressar à meditação sobre a identidade nacional, peregrinando pela herança dos que sonharam, racionalizaram, apoiaram, implantaram, defenderam e legaram o conjunto de referências da história vivida, dos mitos, dos modelos racionais, e dos valores éticos que definem a maneira portuguesa de estar no mundo, tal atitude proclama a decisão de pôr em evidência o alicerce de que com maior segurança se tem de partir para responder, com novo vigor, e de maneira activa, aos desafios que se perfilam e às incertezas que não se desvendam. Não há que supor que a globalização, cujo dinamismo é ainda deficientemente conhecido, poderia deixar de criar uma definição de valores em função da unidade em estruturação, nem é de recear o inevitável fenómeno da creoulização dos modelos de comportamento em consequência da libertação e encontro de todas as culturas antes separadas por estruturas políticas e afastamentos geográficos, porque foi de um processo semelhante que emergiram as nações, e algum tecido novo deve emergir em resposta ao reconhecimento de que o mundo é a casa comum do género humano.

Esta evolução desactualizou todos os conceitos políticos que foram dominantes até ao fim da guerra de 1939-1945, e nesta data a relação de confiança das sociedades civis com as estruturas governamentais clássicas está afectada em todo o espaço ocidental, a comunicação entre as estruturas supranacionais e os povos é débil, a governança internacional espera reinvenção, a carência de lideranças é notória.
O apelo à avaliação do futuro dos valores vem de sedes espirituais diversificadas, e de homens de variada filiação cultural, como Edgar Morin, Mohammed Arkoun, Paul Ricoeur, Jacques Derrida, Fay Chung, Nadime Gordimer, Jérôme Bandé, juntos com muitos outros em meditação, na qual não pode estar ausente a UNESCO, nem o PNUD com a sua voz a favor dos submetidos à geografia da fome.

Nenhum país está imune em relação a este ambiente que, por muitas latitudes, produz o efeito colateral do desânimo, do pessimismo, da falta de referência, da passividade que é o contrário da virtude do civismo. As sociedades civis, como acontece entre nós, parecem envolvidas por um tecido de polémicas e imagens que se distanciam da realidade, deixam na penumbra o conceito da vida angustiada das comunidades mergulhadas na incerteza, mas ainda assim a tentar exercitar a voz e o poder dos que não tem poder.

É neste ambiente, longe das euforias mas não da coragem, que os chamados homens bons da tradição, os quais exercem as responsabilidades da vizinhança, guiam as atenções para o eixo da roda que são os valores da identidade, regressam à escuta das vozes que no passado ampararam a resposta às incertezas de cada nova conjuntura, reforçam o tecido que dá forma à comunidade, organizam o alicerce no qual se firma a bandeira da ambição cívica, do projecto de novos futuros, da determinação e da esperança. Esta cerimónia é exemplo de muitas outras, com variados modelos, que se multiplicam pelo país não noticiado, e a solenidade que lhe é emprestada pela presença do Chefe de Estado é certamente uma contribuição valiosa para que a sua voz ganhe em sonoridade e alcance.

Porque a situação de angústia em que se encontra a comunidade portuguesa, que na vida da mesma geração sofreu alterações do ambiente interno e externo da sua identidade com raros precedentes, exige o sobressalto do civismo dos homens comuns, o rigor no exercício da responsabilidade irrecusável na escolha de lideranças, uma visão clara do que nos faz viver juntos como povo, determinação sobre a forma e a substância do modelo de sociedade que assegure a viabilidade da independência nos condicionamentos do terceiro milénio.

A humildade de escutar as mensagens dos que ao longo dos tempos procuraram contribuir para enriquecer o património de experiência que nos foi legado, vai de par como o orgulho de estarmos entre os herdeiros. Porque se ninguém escolhe o povo em que lhe acontece nascer, a decisão de ficar é um acto de liberdade e de amor pelo passado, um acto de partilha da responsabilidade pelo presente, um acto de confiança na construção do futuro.

A gesta portuguesa definiu a primeira grande linha de reestruturação do globalismo que hoje condiciona a totalidade do género humano, em todo o caso com uma teologia de mercado a traçar um distanciamento conflituoso entre os países mais ricos, que organizaram um Conselho de Segurança informal no G-8, e os mais incluídos na geografia da fome que, invocando o espírito de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, lutam por ter voz, presença, e equidade.

As teses do conflito de civilizações parecem receber uma sangrenta confirmação nos factos, os mitos raciais vão sendo absorvidos numa teoria crescente de mitos culturais, o multiculturalismo perturba as sociedades europeias, Huntington teme pela identidade americana no seu Who are We? do ano passado.

É evidente que nenhuma expansão se verificou sem passivo, e no caso português é conveniente ler Diogo do Couto a par de Luís de Camões. Mas não pode também ignorar-se que as finais emergências, com a enorme expressão do Brasil, de Cabo Verde, dos pólos hoje dinamizadores das sociedades civis das restantes antigas colónias, foram possíveis apenas por um sentido de igual dignidade das etnias, da troca de padrões entre culturas diferentes, de miscenizações sem teorias de desenvolvimento separado, da regra de aceitar os filhos como sacramento laico das uniões, de considerar o povoamento como decisão de naturalizar as terras como portuguesas.

O fim do Império Euromundista, na sequência da guerra civil ocidental de 1939-1945, se fez chamar às várias Romãs todas as legiões ocidentais não apagou esses valores semeados ao redor da terra, que apoiam a reinvenção urgente da nova ordem mundial, não apenas a partir dos Estados nascidos ligados pela língua portuguesa, que também é nossa mas também é deles, valores articulados pela diáspora desta Nação Peregrina em Terra Alheia que em grande parte somos, e todos desafiados a construir o futuro pacífico dos povos.

Um futuro que aponta para assumir a dimensão da comunidade portuguesa muito para além das fronteiras geográficas que evolucionaram para apontamentos administrativos, muito para além das fronteiras económica e política que se confundem com as europeias, muito para além da fronteira de segurança que é a da aliança, mas abrangente das comunidades de portugueses, descendentes de portugueses, e filiados na cultura portuguesa, espalhadas pelas sete partidas do mundo, mas não esquecidas das raízes, das origens, nem indiferentes ao futuro.

Um futuro partilhado sempre que consigamos que os que vivem no continente americano se inquietem com os que se fixaram em África, estes com os dos territórios europeus, ou europeus com os que ficaram pela Ásia, e todos com cada um, e cada um com todos. Porque este monumento hoje inaugurado define uma identificada solidariedade humana muito para além de todas as fronteiras, muito para além da geografia dos poderes políticos, transfronteiriça, pacífica, cooperante, aberta ao mundo, às diferenças, às trocas de padrões. Uma solidariedade que fortalece o exercício do poder dos que não têm poder, para ajudar a reinventar uma nova governança mundial que assegure o desenvolvimento sustentado em paz dos povos que viverão o terceiro milénio.

Oliveira do Bairro, 27/10/05

ADRIANO MOREIRA
Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior
Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa